domingo, 8 de novembro de 2009

CONFLITO MUSICAL

Doutor Eduardo viajou quatorze horas para buscar seu filho que está residindo na região norte do país, ele não o encontra há mais ou menos quatro anos. Eduardo viu o filho quando ainda tinha onze anos, depois da separação conjugal passou a residir em São Paulo, voltou apenas uma vez para visitá-lo, isso foi no primeiro ano de separação, depois apenas conversava esporadicamente com o filho pelo telefone, mas começou a perceber que as conversas estavam a cada dia mais frias, no ultimo ano a ex-esposa vinha reclamando que o garoto não estava andando em boas companhias e se apresentava bastante rebelde, diante de tudo que ouviu decidiu então que buscaria o filho para passar alguns dias com ele, como a mãe do garoto não fez objeções ele decidiu, juntamente com a nova companheira, que assim seria.
Depois do encontro com o filho, de constatar que o garotinho crescera e estava um rapaz de quinze anos, quase mais alto que ele, alguns pircins no nariz e sobrancelhas, brincos nas orelhas, várias tatuagens pelos braços e roupas extravagantes, achou tudo muito estranho, para não começar mal o encontro, preferiu ficar calado. Em seguida iniciou a viagem de volta, pouco tempo de estrada e um silêncio total. Para quebrar o gelo Eduardo abre uma caixa com CDs e de lá retira um e coloca no cdplay do carro, em seguida faz um comentário:
- Gosta de música?
- Só. – Frase monossilábica denotando aprovação.
- Então vais ouvir um som de qualidade – Começa tocar e o Dr. Eduardo comenta. É John Lennon, ele fez história na música mundial!
Thiago não diz nada parece indiferente a tudo, de repente, enfia a mão na mochila e de lá retira um CD de um grupo de Have Metal, enfia o dedo direto no eject, tira o CD que Eduardo havia colocado com tanta cerimônia e enfia o seu. Eduardo se sentiu ultrajado com a maneira estúpida que aquele rapazola retirou seu CD, mas preferiu calar-se para não criar confusão, afinal, tinha que reconquistar o garoto:
- Saca só coroa, isso é que é som manero! - Um som barulhento parecia querer estourar os tímpanos de Eduardo.
Não aguentando mais, Eduardo retira um outro CD, delicadamente pede desculpas e retira o que estava tocando e coloca o seu:
- Já que você quer falar em rebeldia ouça este – alguns instante tocando e ele comenta – Jhemi Hendrick era demais, tinha um som maravilhoso e era totalmente rebelde - Eduardo nem terminou de falar e Thiago novamente retirou o CD que estava tocando e colocou um outro dos seus:
- Coroa, coroa, você tem que se reciclar está ultrapassado, esses caras aí não são nada, não passam de um bando de velhinhos babões! Pô coroa, cê é careta demais brother!
Eduardo percebeu que o garoto queria tira-lo do sério, segurou-se não queria criar atritos, tinha que se controlar, tentou dialogar com Thiago, mas com o som alto apenas ele falava enquanto o garoto balançava a cabeça acompanhando, adoidamente o ritmo da música. Eduardo perdendo a compostura enfiou o dedo no stop e desligou o som e falou:
- Olha aqui, não quero discutir com você, mas não podemos passar a viagem toda nessa disputa musical, podemos conversar um pouco?
- Qualé veio! Você veio me buscar, estou indo, agora quer o quê? Estabelecer contatos? Vê se me erra, pelo seu gosto musical seu papo deve ser careta pacas!
- Olha aqui garoto vê se me respeita, não esqueça que sou seu pai!
- Depois de se ausentar por tantos anos vem com esse papo de “sou teu pai”, dá um tempo coroa!
- Garoto atrevido, eu... – Eduardo prefere calar-se.
- Taí, já começou! Vai me bater brother! Só falta isso.
Thiago não agüenta o silêncio e para confrontar com o pai retorna o CD Have Metal. Irritado Eduardo não espera muito e aperta o stop, saca o CD joga no colo do garoto em seguida coloca um Milton Nascimento e completa:
- Vamos estabelecer o seguinte, ao menos no carro eu mando e aqui vai tocar o que eu quero, menos esse lixo musical teu. Aplaudindo o garoto saca do fundo do baú um insulto:
- É isso aí cria de ditador, não podia ser diferente, tua formação vem do período da ditadura, não tá negando suas origens né coroa! Que papo típico, “sabe quem manda aqui”? Qualé!
- Olha aqui protótipo de bandido, você já me encheu, e digo mais, coroa é a ... – o palavrão sai bem soletrado. Você com esses brincos, pircins enfiado em tudo que é lugar, essa roupa indecente, esse cabelo imundo está achando que é gente.
Enquanto no Cd play do carro toca Canção da América a discussão continua.
- Se sou protótipo de bandido tem um dedo seu para isso, se minha roupa é imunda e minha aparência é bisonha pelo menos não sou falso, e você, com esse terno fino não passa de um crápula, ou será que acha que é um exemplo a ser seguido!
- Ao menos tenho uma formação que consegui a duras penas, lutando desde de cedo, sendo gente logo na adolescência e não sendo um inútil como você!
- Pra início de conversa, coroa, eu não pedi para vir nessa viagem você que insistiu para limpar sua barra com os amigos almofadinhas, para não continuarem dizendo que o doutor Eduardo todo moralista, abandonou mulher e filho para viver com outra mulher mais nova.
- Mais uma vez, coroa é... e outra, não quero limpar nada, não sei o que sua mãe disse, mas já não nos entendíamos mais e decidi que deveria começar de novo, não pretendia ficar longe, mas..
- Tá achando que vai me convencer com esse papo de advogado de quinta categoria, dá um tempo pra minha cabeça véio...
- Pra ser sincero garoto, você é um saco mesmo, deve ser um estorvo até para sua mãe, talvez por isso que ela te liberou com tanta facilidade!
- Devo ser um estorvo mesmo, só que não pedi para nascer.
- Eu também não queria que nascesse um porcaria tão grande como você, queria uma coisa melhor. - O doutor Eduardo pegou pesado.
- Pára essa merda de carro que eu vou descer!
- Se não viesse a ter implicações com a justiça eu te jogava agora, não só do carro, mas da minha vida.
- Tudo bem então eu pulo e resolvo teus problemas
- Seria até um favor, mas quero te levar de volta o quanto antes também não quero você por perto.
Repentinamente Eduardo desliga o som do Cd e um silêncio muito grande se faz naquele local, cada um no seu lado estão se remoendo de ódio, com o silêncio quase dá para ouvir os corações em batidas aceleradas.
O carro continua correndo e Eduardo vai se acalmando e pensando o que deve fazer. Levá-lo de volta? Continuar a viagem e tentar reverter a situação? De repente avista um posto de gasolina com restaurante, já está passando a hora do almoço, com a discussão os dois até esqueceram da fome. Eduardo estaciona o carro, abre a porta faz menção de sair e Thiago continua dentro do carro.
- Vamos almoçar? – convida Eduardo, mas o garoto apenas balança a cabeça negativamente. Eduardo vira-se e vai rumo ao restaurante.
Enquanto almoça Eduardo fica olhando o garoto dentro do carro, de repente ele abre a porta e caminha a esmo, Eduardo começa a ficar preocupado. Thiago caminha vagarosamente olhando para o chão, vai jogando os braços para os lados e o gingado do corpo no estilo largadão, próprio do adolescente.
De dentro do restaurante o doutor Eduardo observa a tudo e, mais calmo, começa a refletir:
- Fui muito rude com ele, tudo bem que ele foi agressivo, mas tem seus motivos! Quatro anos sem visitá-lo, sem estar acompanhando seu crescimento, sem orientá-lo, o que poderia esperar? Que ele viesse correndo, me desse um abraço e dissesse papai querido estava com muita saudade do senhor! - Em seguida se dá um puxão de orelha. - É, doutor Eduardo, você é o adulto aqui, você pisou na bola feio, o garoto queria provocá-lo e você correspondeu! Afinal de contas, está recebendo algo que não mereça? - Em seguida ficou apenas contemplando o garoto sentado num banco próximo a uma bomba de gasolina, de cabeça baixa com uma vareta na mão a riscar o chão. Nesse instante o doutor Eduardo começou a lembrar do tempo em que ia jogar bola e levava o garoto, as idas aos parques e ao clube, ele sempre estava junto e, de repente, tudo acaba. Nesse instante uma lágrima escorre pelo seu rosto:
- Doutor Eduardo, Doutor Eduardo, você tem uma parada dura pela frente, mas vai ter que consertar a “caca” que fizeste? - Pensa consigo.
Depois de almoçar pouco, diga-se de passagem, o doutor passa pelo Thiago, dá-lhe um tapa carinhoso no ombro e convida:
- Vamos embora!
Thiago com muita má vontade levanta-se e caminha preguiçosamente. Ao entrar dentro do carro pergunta:
- Vai me levar de volta para casa?
O doutor Eduardo sai com o carro e demora um pouco para responder ao filho:
- Pensei bastante e achei que seria muito cômodo para mim levá-lo de volta. Sua mãe pode achar que eu estou fugindo da responsabilidade!
- Pode ficar tranqüilo, eu limpo sua barra, prefiro isso a continuar nessa furada!
O doutor prefere calar, não quer continuar a agressão, vai continuar com o projeto de conquista:
- Filho, quero pedir desculpas, eu exagerei, me perdoa!
- Pra você é muito fácil pedir desculpas e esperar que eu esqueça tudo e te dê um abraço carinhoso! Como esquecer às vezes que eu sonhei contigo, acordei chorando e chamando teu nome! Quando fiquei doente e achei que fosse morrer, onde você estava? Nas festas pelo dia dos pais pode imaginar o que eu sentia? Imagina as desculpas que dava quando perguntavam pelo meu pai? Sinceramente preferia dizer que ele havia morrido a falar que eu era um rejeitado.
- Mas, filho, eu e sua mãe não tínhamos mais nada em comum, a gente não se entendia e achamos melhor viver separados a viver brigando.
- Nunca pedi que viesse morar com a gente, afinal de contas isso é problemas de vocês, só não precisava me abandonar! O que você acha que eu senti, a gente morou dez anos juntos, de repente, o mundo desaba, você foi embora e nos esquece. Pô cara! Existe ex-esposa, mas não ex-filho, e mais, você sempre deu mais atenção para a filhinha da esposa nova. Eu te odeio e isso não vai passar fácil. - Thiago para de falar, vira para a janela do carro, coloca a cabeça para fora e fica assim, doutor Eduardo percebe que ele está chorando.
- Thiago, eu... – um advogado que sempre teve facilidade com as palavras parece não ter nada pra dizer. - Filho, tudo que eu disser pesará contra mim, por isso só posso dizer – silêncio e, de repente, com voz embargadam diz. - Eu te amo. – Respira fundo e repete – Se você não ouviu repito: eu te amo!
Thiago continua com a cabeça enfiada no vento fora do carro, faz de conta que não ouviu nada. A viagem segue e agora é só o silêncio que reina. Muitos quilômetros depois:
- Posso colocar um dos meus cds? - Thiago fala sem olhar para Eduardo que quase não acredita no que ouviu, ele não o chamou de coroa, nem de velho e o melhor, pediu permissão para colocar um cd.
- Claro filho, claro! Só peço para não colocar muito alto, pode ser?.
- Falou chefia! - Falando assim Thiago colocou o cd.
O doutor Eduardo está muito feliz, sabe que não será fácil o caminho da reconquista, tem consciência que falhou em deixar que o dia-a-dia servisse de desculpas para não acompanhar mais de perto o crescimento físico e moral do filho. Sabe também que as questões mais traumáticas não serão resolvidas como num passe de mágica, mas, fundamentalmente, com tolerância, inteligência e bons exemplos.

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